segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Lendo "O mundo em chamas", de Siri Hustvedt

No capítulo "Harriet Burden - Caderno O. O Quinto Círculo" Harriet recebe Rune em Nantucket e os dois realizam uma dramatização utilizando máscaras: Harriet assume a personalidade de Richard Brickman (derivada de "múltiplas origens inconscientes" - lembrei-me da tese de doutorado de Christine Muggler "Polygenetic Oxisols on Tertiary Surfaces"; a origem poligenética de formações do inconsciente se chama "Superdeterminação"), Rune assume a personalidade de Ruin, a qual "tinha uma história. Ela tinha sonhos, grandes, pequenos, ridículos; sonhos de grandeza...Ela não era artista, não, apenas uma ilustradora. As suas ambições grandiosas eram desenhar e pintar para livros infantis. Onde ele tinha encontrado esta criatura acanhada e esperançosa?...Na mãe, na irmã?"

É estranho que Harriet, de olhar tão agudo e perspicaz sobre outros, não perceba que Rune baseia-se cruelmente nela para criar Ruína, com suas ambições artísticas grandiosas, sua necessidade de reconhecimento. "Ela não queria se gabar, sabe, mas sabia desenhar um pouco, e estava melhorando, e torcia para ter uma chance, quem sabe fosse apresentada a alguém. Quem sabe eu pudesse ajudar." O "eu" que fala é Richard Brickman, que aliás apresenta e discute o trabalho de Harriet Burden em carta para o boletim The Open Eye. Acho interessante que os dois cadernos inicialmente perdidos de Harriet Burden fossem os cadernos O e I, que pronunciados em inglês lembram o nome do boletim, Open Eye (Open I). Richard Brickman afinal de contas acaba apresentando Harriet Burden a alguém, a I. V. Hess, que decide escrever o livro sobre a artista aspirante Harriet Burden/Ruina.

Acho que Rune seja muito mais importante no livro do que até agora ficou óbvio - talvez ele seja realmente o artista - em sua "paródia" de Burden, ele compara suas aspirações artísticas a desenhar e pintar livros infantis, diminuindo cruelmente, repito, as grandiosas ambições artísticas de Harriet Burden. Ele claramente conheceu Felix Lord, talvez tenha sido seu amante, o objeto de um envelhecido pederasta. Terá de alguma forma desejado se vingar? Terá se aproximado maliciosamente de Burden com o objetivo de realizar uma superior obra de arte? Ele aparentemente se assenhora da obra de Burden para a qual deveria ser apenas uma face disfarçada - mas não terá sido tudo isso uma farsa dele mesmo, uma elaborada "armação" artística e de vingança pessoal ao mesmo tempo? Leiamos o livro adiante.

De início fiquei um pouco confuso pela estranha aparição de Philip K. Dick e sua irmã, pela discussão sobre lógica aristotélica, lógica booleana, a morte da irmã de Dick. Por que aquilo? Por que essa aparição fantástica de Horselover Fat numa obra como O mundo em chamas? Percebi no entanto que o importante não era o que Rune dizia sobre Dick, mas o próprio fato de ele ter trazido Dick à baila - um artista angustiado, drogado, psicótico, ansioso por escrever obras literárias mainstream e ser reconhecido pelas mesmas, mas que só conseguia realmente se expressar através da malvista ficção científica, um gênero de literatura escapista e de segunda mão. Ainda viria o tempo em que sua obra, a de ficção científica mesmo, seria reconhecida e que autores com Ursula LeGuin o comparariam a Jorge Luis Borges.

Mas isso também não interessa, o que interessa é o que Siri Hustvedt faz aqui. Ela criou e usou um símbolo moderno de referência literária. Lembrei-me de uma palestra ou entrevista com George Steiner em que ele discute o simbolismo que existia na Literatura e cujo significado aos poucos desaparecia. Citava especificamente um trecho de The Sun Also Rises de Hemingway, em que duas personagens se encontram em Roncesvalles e que, para qualquer um com o mínimo de cultura, aquela citação deixava claro que haveria algum tipo de traição. Hustvedt cria uma simbologia literária moderna, ao utilizar a imagem de Philip K. Dick como uma representação do artista angustiado pela falta de reconhecimento, o que acrescenta mais riqueza à personagem de Rune, indubitavelmente mais profunda e complexa do que se pensava  inicialmente. Oswald Case has a point. 

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