No capítulo
"Harriet Burden - Caderno O. O Quinto Círculo" Harriet recebe Rune em
Nantucket e os dois realizam uma dramatização utilizando máscaras: Harriet
assume a personalidade de Richard Brickman (derivada de "múltiplas origens
inconscientes" - lembrei-me da tese de doutorado de Christine Muggler
"Polygenetic Oxisols on Tertiary Surfaces"; a origem poligenética de
formações do inconsciente se chama "Superdeterminação"), Rune assume
a personalidade de Ruin, a qual "tinha uma história. Ela tinha sonhos,
grandes, pequenos, ridículos; sonhos de grandeza...Ela não era artista, não,
apenas uma ilustradora. As suas ambições grandiosas eram desenhar e pintar para
livros infantis. Onde ele tinha encontrado esta criatura acanhada e
esperançosa?...Na mãe, na irmã?"
É estranho que
Harriet, de olhar tão agudo e perspicaz sobre outros, não perceba que Rune
baseia-se cruelmente nela para criar Ruína, com suas ambições artísticas
grandiosas, sua necessidade de reconhecimento. "Ela não queria se gabar,
sabe, mas sabia desenhar um pouco, e estava melhorando, e torcia para ter uma
chance, quem sabe fosse apresentada a alguém. Quem sabe eu pudesse
ajudar." O "eu" que fala é Richard Brickman, que aliás apresenta
e discute o trabalho de Harriet Burden em carta para o boletim The Open Eye.
Acho interessante que os dois cadernos inicialmente perdidos de Harriet Burden
fossem os cadernos O e I, que pronunciados em inglês lembram o nome do boletim,
Open Eye (Open I). Richard Brickman afinal de contas acaba apresentando Harriet
Burden a alguém, a I. V. Hess, que decide escrever o livro sobre a artista
aspirante Harriet Burden/Ruina.
Acho que Rune seja
muito mais importante no livro do que até agora ficou óbvio - talvez ele seja
realmente o artista - em sua "paródia" de Burden, ele compara suas
aspirações artísticas a desenhar e pintar livros infantis, diminuindo
cruelmente, repito, as grandiosas ambições artísticas de Harriet Burden. Ele
claramente conheceu Felix Lord, talvez tenha sido seu amante, o objeto de um
envelhecido pederasta. Terá de alguma forma desejado se vingar? Terá se
aproximado maliciosamente de Burden com o objetivo de realizar uma superior
obra de arte? Ele aparentemente se assenhora da obra de Burden para a qual
deveria ser apenas uma face disfarçada - mas não terá sido tudo isso uma farsa
dele mesmo, uma elaborada "armação" artística e de vingança pessoal
ao mesmo tempo? Leiamos o livro adiante.
De início fiquei um
pouco confuso pela estranha aparição de Philip K. Dick e sua irmã, pela
discussão sobre lógica aristotélica, lógica booleana, a morte da irmã de Dick.
Por que aquilo? Por que essa aparição fantástica de Horselover Fat numa obra
como O mundo em chamas? Percebi no entanto que o importante não era o que Rune
dizia sobre Dick, mas o próprio fato de ele ter trazido Dick à baila - um
artista angustiado, drogado, psicótico, ansioso por escrever obras literárias
mainstream e ser reconhecido pelas mesmas, mas que só conseguia realmente se
expressar através da malvista ficção científica, um gênero de literatura
escapista e de segunda mão. Ainda viria o tempo em que sua obra, a de ficção
científica mesmo, seria reconhecida e que autores com Ursula LeGuin o
comparariam a Jorge Luis Borges.
Mas isso também não
interessa, o que interessa é o que Siri Hustvedt faz aqui. Ela criou e usou um
símbolo moderno de referência literária. Lembrei-me de uma palestra ou
entrevista com George Steiner em que ele discute o simbolismo que existia na
Literatura e cujo significado aos poucos desaparecia. Citava especificamente um
trecho de The Sun Also Rises de Hemingway, em que duas personagens se encontram
em Roncesvalles e que, para qualquer um com o mínimo de cultura, aquela citação
deixava claro que haveria algum tipo de traição. Hustvedt cria uma simbologia
literária moderna, ao utilizar a imagem de Philip K. Dick como uma
representação do artista angustiado pela falta de reconhecimento, o que
acrescenta mais riqueza à personagem de Rune, indubitavelmente mais profunda e
complexa do que se pensava inicialmente.
Oswald Case has a point.