quinta-feira, 22 de março de 2012

O homem que se recusou a ser espetáculo

Goethe, por meio do Poeta, no "Prólogo no Palco" de seu Fausto, já reclamava que o gosto do público piorava e o teatro se rendia às necessidades comerciais. Já então, ou desde muito antes, a Alta Cultura perdia espaço para a cultura do entretenimento, substituição levada ao extremo em nossos tempos, em que um Pedro Bial posa de intelectualoide. Imaginar que um intelectual pudesse apresentar um reality show é comparável a se pensar um ativista dos direitos animais narrando com entusiasmo uma briga de galos. Mas é assim a manipulação da realidade da Globo.

Assisti ali agora uma entrevista em que esse Genetton Moraes Neto tenta conversar com o cantor paraibano Geraldo Vandré e achei o negócio todo constrangedor, embora eu tenha terminado de assistir com uma boa impressão do artista. O repórter quer o tempo todo arrancar respostas "simples e diretas", mastigadinhas e pré-digeridas, de Vandré, que se esquiva habilmente. O cantor, na verdade, consegue ao longo de toda entrevista evitar as tentativas de espetacularização de sua pessoa que o repórter faz, suas respostas, quase inaudíveis boa parte do tempo, são sutis, lacônicas e reticentes, mas não ambíguas. Perguntado por que não canta mais, ele é bem claro - porque não há espaço mais para uma arte de qualidade, há espaço e desejo de consumo de entretenimento, de "cultura" massificada e sem significado e, como ele mesmo diz num trecho memorável, "ele não faz qualquer coisa". Vandré me pareceu infinitamente decepcionado com o rumo do mundo, mas seu espírito não está anestesiado.

Eu penso entender a ânsia da Globo em entrevistar Geraldo Vandré. Há um momento na entrevista em que o obtuso repórter tenta constrangedoramente arrancar de Vandré um reconhecimento de decepção de que sua canção Caminhando tenha sido transformada em canção de protesto, mas não consegue, o artista não é tolo. A tentativa foi bem clara de anular, neutralizar como insignificante um momento de verdadeira cidadania, de  transcendência, embora fugaz, da História Brasileira, da resistência à podre ditadura, à qual a Globo verdadeiramente não se opôs. Mas não se trata de simplesmente diminuir um fato histórico.

A própria entrevista e a malfadada tentativa de espetacularização de um erudito subversivo faz parte de um movimento mais amplo - a neutralização da resistência à indústria de entretenimento excremental. Não é outra coisa o que se faz ao se expor constantemente a figura do escritor paraibano Ariano Suassuna ao público, ao se vulgarizar de forma rasa sua obra, para que o público não identifique Suassuna como o crítico ferrenho da massificação cultural que a própria Globo promove, mas como "o autor daquela comédia que passou na Globo".  É uma manobra terrivelmente sutil, ardilosa. Suassuna é uma figura carismática, é um homem do espetáculo, da aula-espetáculo, que a Globo não mostra, é uma imagem que vende, certamente contra sua vontade. Este outro paraibano Vandré recusa-se até mesmo a isso: ao invés de uma peça cômica, mais ao gosto do público, anuncia que está produzindo um poema sinfônico e fecha magistralmente, "não há nada mais subversivo que um subdesenvolvido erudito".

terça-feira, 20 de março de 2012

Segundo post

Que deveria ter sido o primeiro, o já clássico Hello, world. A primeira coisa que gostaria de dizer é que não sou crítico literário ou filósofo, nem profissional nem amador. Sou um apreciador de ficção científica, de preferência boa. Escrevo esse blog sem nenhuma pretensão, escrevo-o como se fosse uma conversa entre aficionados e espero que possíveis leitores o vejam da mesma forma.

O primeiro post, e o blog por consequência, foi escrito por uma necessidade incontrolável. Alguém já disse isso e eu repito, alguns escritores e principalmente críticos literários parecem não terem notado que nós já vivemos em um mundo que é ficção científica, permeado por tecnologia. As questões levantadas por essa nova realidade são magistralmente respondidas ou discutidas pela ficção científica, por escritores de ficção científica, por pessoas que cresceram lendo e pensam o mundo pelo ângulo da ficção científica. Não haveria outra forma de abordar um mundo em que o meio ambiente muda de forma quase catastrófica, em que o clima está em transição, onde se exigem novas formas de energia, de consumo, de transporte, se não fosse por esse gênero literário.

Como se pode elaborar a questão dos organismos geneticamente modificados, da singularidade, da personalidade expandida pelas redes sociais escrevendo-se um "épico lírico de horror"? Não consigo pensar em um épico de nossos dias sem me recordar da Fundação, do Sprawl, mesmo de Matrix. É disso que quero falar.

E de outras coisas também, do que for na minha cabeça de "filósofo popular", como diria Braulio Tavares. Sobre o impacto das redes sociais na nossa personalidade expandida, sobre a massificação da cultura até um ponto em que penso que cultura não existe mais. Não tenho nenhuma expectativa que me leiam, quero escrever e sinceramente deixar registrado nessa gigantesca internet ainda democrática o que penso, embora isso não interesse a ninguém que não eu mesmo.

O que é ficção científica?

Acabei de comprar um Kindle da Amazon e o primeiro livro que adquiri e li foi o Blood Meridian, de Cormac McCarthy, livro sobre o qual não vou falar agora. É o segundo livro que li desse autor, o primeiro tendo sido A Estrada (The Road), sobre o qual quero falar um pouco. Comprei A Estrada meio desconfiado porque não conhecia o autor e porque sabia que já tinham feito um filme baseado no mesmo. Pensei - deve ser a típica excrescência literária americana moderna, o livro escrito para ser um filme de sucesso. Nada. O livro é soberbo. A Estrada é tão bem escrito e intenso que ainda não consegui fazer a releitura, um trabalho de artista maduro, com um domínio espantoso da técnica, criando um sonho ficcional quase tátil.

Quis imediatamente saber mais sobre o autor e descobri que é considerado um dos maiores autores vivos norte-americanos, já quase um clássico. Harold Bloom, o Stephen Jay Gould da crítica literária, considera McCarthy um verdadeiro artista. Que é isso! Fiquei entusiasmado, a crítica literária mainstream americana louvando os méritos literários de um escritor de ficção científica! Harold Bloom, o Harold Bloom, animado com o cara, já o achando um gênio...Aí encontrei um texto esclarecedor.

Assim como Steve Jobs, parece que os críticos literários, ou alguns, criam ao redor das obras que apreciam um campo de realidade distorcida. Porque apesar de eu ter lido A Estrada com meus próprios e cansados olhos de SF aficionado e ter reconhecido nesse livro uma ficção científica inequívoca e de primeira qualidade, os profissionais da crítica literária fizeram questão de deixar bem claro que A Estrada ficção científica não é. É uma fábula pura, senhores. É, como disse um mais idiota, "um épico lírico de horror", o que quer que isso signifique. Uma história ambientada em um mundo pós-apocalíptico onde ocorreu algum tipo de catástrofe ambiental, não é ficção científica, somos informados.

O problema, parece-me, é que Cormac McCarthy, antes de The Road, era já um escritor mainstream consagrado, elogiado por Harold Bloom, não escreveria, não poderia escrever ficção científica. "Se ele escreve um livro magistralmente elaborado que qualquer forma pensante de vida classificaria como science fiction, deveríamos nós críticos de estabelecida reputação reavaliarmos nossa impressão sobre o gênero?". Não. A realidade é nada sutilmente distorcida - a ficção científica de McCarthy não é ficção científica, é... é... é "a mais pura fábula, é um épico lírico de horror." Aaaargh.