Tua carne já não é tão firme,
Tua pele já não é tão lisa;
Ainda assim eu as desejo,
Ainda assim eu te desejo.
Há rugas em teu rosto sólido,
Há marcas em tua alma viva:
Meu dedo desenha tuas rugas,
Minh'alma desliza em tuas marcas.
Teu amor por mim é maduro,
Sem sentimentalismo fútil.
Há só um sentimento cheio.
Ainda vou te amar assim:
Sem exigir adoração,
Sem exigir que tu te anules.
segunda-feira, 29 de dezembro de 2014
Mero versejador
Há um poema que
desejo escrever
Sobre a arte de ser
quem eu não sou;
Sobre o fracasso
mesmo de não ser
Ou de insistir que
eu seja e não que estou.
Sou poeta ou mero
ser burguês?
Sou amante da ordem
ou da amplidão?
Sou o bardo
inventando seu inglês
Ou o tirano gritando
em alemão?
Tenho a dor do poeta
angustiado,
Incapaz de a palavra
certa achar;
Mas com o termo
preciso e burilado
Um poema perfeito eu
vou criar.
Alguma coisa errada
nestes versos
Denunciam que sou
versejador,
Que o poeta é o
maior dos universos
E eu não passo de
mero sonhador.
Descrição da Dorotea por Nabokov
No conto La
Veneziana, Nabokov faz uma admirável descrição da pintura Dorotea, de
Sebastiano del Piombo. Creio que seria possível refazer o quadro baseado em sua
descrição, cuja precisão só pode ser alcançada por um artista maduro e
imensamente talentoso, dominando completamente seu metier. Transcrevo-a:
"A pintura era
mesmo muito boa. Luciani havia retratado uma beleza veneziana em meio-perfil,
parada diante de um fundo quente, negro. O tecido tingido de rosa revelava o
pescoço proeminente de tom escuro, com dobras excepcionalmente suaves debaixo da
orelha, e a pele de lince cinza com que o manto vermelho-cereja era debruado
caía do ombro esquerdo. Com os dedos longos da mão direita abertos em pares,
ela parecia estar a ponto de arrumar a pele que caía, mas se imobilizara no
meio do movimento, os olhos castanhos, uniformemente escuros, olhando
fixamente, languidamente para o espectador. A mão esquerda, com babados brancos
de cambraia circundando o pulso, segurava uma cesta de frutos amarelos; a coroa
estreita de um adorno de cabeça brilhava sobre o cabelo castanho-escuro. À
esquerda, o negro era interrompido por uma grande abertura em ângulo reto para
o ar do crepúsculo e o vazio azul-esverdeado de um entardecer nublado."
Sei que essas não
são exatamente as palavras de Nabokov, mas suas palavras filtradas pela
tradução, ainda assim magistrais. Mais à frente, no texto, o autor descreve a
imperícia na observação da obra por uma personagem desacostumada a apreciar
obras de arte - gostei muito da forma como ele descreve a percepção
simplesmente sensual da obra de arte:
"Deve-se
enfatizar, porém, que Simpson, desacostumado como era da contemplação de obras
de arte, evidentemente não era capaz de apreciar completamente a mestria de
Sebastiano del Piombo, e a coisa que o fascinou - à parte, claro, o efeito puramente fisiológico das cores esplêndidas
sobre seus nervos ópticos - foi a semelhança que havia notado
imediatamente, embora tivesse visto Maureen pela primeira vez." Como se a
obra de arte esplêndida pudesse afetar fisiologicamente os sentidos brutos de
alguém incapaz de apreciar-lhe as sutilezas. Será possível? Não me lembro mais
em que livro, uma personagem se perguntava se seria possível expressar a
verdade através de um olhar suficientemente intenso, a ponto mesmo de se
comover um algoz. Não seria isso uma idealização do poder expressivo de uma
obra de arte? Nervos ópticos não treinados na apreciação da beleza conseguiriam
ao menos identificar o esplendor de cores magníficas ou um sentimento sublime?
Assinar:
Postagens (Atom)