domingo, 25 de janeiro de 2015

Impressões de "Desonra", de J. M. Coetzee

Volta-me sempre à mente a noção de que a ficção é uma rebelião contra a realidade, como acredita Mario Vargas Llosa. Sou desde cedo um rebelde, estou sempre em fuga. Li há dias o livro Desonra, de J. M. Coetzee, o qual, nas palavras de Mario Sergio Conti, "é uma resposta artística profunda à ferocidade avassaladora da realidade" - como assim? O que isso quer dizer?

Uma obra de arte, antes de ser dirigida a qualquer um, é uma maneira de o artista retrabalhar a matéria prima, a tal realidade, de que Nabokov desconfia enfaticamente. Concordo que Desonra é profundo. A personagem Lucy me foge, sua essência me escapa, não consigo entender quando diz que não vive de abstrações. É como se não projetasse nada além de si mesma, do aqui e do agora, o que para mim é profundamente estrangeiro. Recusa-se a abandonar a casa onde foi brutalmente violentada (embora não durma mais em seu quarto, não é sobre-humana) - considera que isso seria "fugir" do fato, e o que significa "fugir" de memórias?

A coisa foi feita, seu corpo foi violado e, se ela não existe além de seu corpo, talvez não haja como ou para onde fugir. Transcender é uma ação abstrata, Lucy é concreta. Ela tampouco foge à possibilidade de se casar com Petrus, mentor provável de seu estupro, e não parece se afligir com o que seu atormentado pai classifica como humilhação. Humilhar-se é um rebaixamento figurado, é sair de um abstrato patamar superior (de virtude, de honra, de posição social) para um não menos abstrato patamar inferior. De novo, desde sempre Lucy deixa claro que não vive em abstrações, quer apenas viver em paz.

Não, não me parece que a Literatura seja apenas um ato de rebeldia contra a realidade, como quer Vargas Llosa - é também uma leitura crítica da realidade; é, como afirma John Gardner, com outros, uma forma de pensamento. Desonra está mais para uma reflexão, crítica e estética, sobre determinado corte da realidade, sobre novas e inauditas relações na África do Sul depois do Apartheid.

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