domingo, 1 de fevereiro de 2015

Ceticismo poético

No prefácio à sua biografia de Borges, Edwin Williamson diz que "Borges rejeitava o que considerava a fraude intrínseca do realismo: a pretensão do romancista de erguer um espelho diante da 'realidade' quando de fato sabia tão pouco quanto seus leitores sobre o real modo de funcionamento do mundo." Prestemos atenção às aspas enclausurando a palavra "realidade". Nabokov, no Afterword a Lolita, afirma o seguinte:

"The book developed slowly with many interruptions and asides. It had taken me some forty years to invent Russia and Western Europe, and now I was faced by the task of inventing America. The obtaining of such local ingredients as would allow me to inject a modicum of average 'reality' (one of the few words which mean nothing without quotes) into the brew of individual fancy, proved at fifty a much more difficult process than it had been in the Europe of my youth when receptiveness and retention were at their automatic best." Não nos esqueçamos que Nabokov era leitor de Borges e de que ambos compartilharam de generosos copos de várias fontes.

Não há como não recordar de Fradique Mendes e seu desejo de aprender a "real realidade das cousas" (a palavras portuguesa coisa/cousa vem do latim "causa" - de onde virá a palavra "thing"?). Não sei se compartilho com Borges a rejeição ao Realismo e muito menos a opinião de que este seria uma fraude. O escritor que vale a pena ser lido tem, se não um entendimento, pelo menos uma percepção mais rica e nuançada da "realidade". O ficcionista, como Riobaldo, ainda que quase que nada não saiba, desconfia de muita coisa e pensa longe.

Donde a desconfiança de Borges e Nabokov pela realidade? Será uma desconfiança simplesmente estética, uma declaração de independência? Talvez num patamar diferente esteja o igualmente desconfiado Philip K. Dick, cujo ceticismo não era apenas estético, mas angustiado e patológico. Por criarem mundos e pessoas, situações e sentimentos, teriam esses autores, num tipo de acidente de trabalho por exposição excessiva, tornado-se hipersensíveis ao processo criativo e se acreditado possíveis personagens nalguma obra?

Crianças têm amigos imaginários, brincam com mundos de fantasia. Mario Vargas Llosa acredita que a Literatura seja um ato de rebeldia daqueles insatisfeitos com o mundo e a realidade - "I'm convinced that those who immerse themselves in the lucubration of lives different from their own demonstrate indirectly their rejection and criticism of life as it is, of the real world, and manifest their desire to substitute for it the creations of their imagination and dreams", diz ele em suas Letters to a Young Novelist. Gosto do que ele diz e suas palavras parecem me ajudar em minha constante busca por interpretar o significado da Literatura, mas me lembro de Kafka. Terão sido os mundos criados por Kafka uma rebeldia por essa realidade?

Talvez Kafka tenha sido ainda mais rebelde e exagerasse de caso pensado as pinceladas, descrevendo um mundo como pensasse que era por debaixo das aparências enganosas. Não sugeria um mundo alternativo, mas é como se dissesse "o mundo ideal seria o oposto disso que, enojado, descrevo." Mas já que estou tratando de realidade e ficções, o que dizer das ideologias e religiões? Não seriam também ficções, porém de um tipo mais perigoso, por mais extremo - um tipo que não se satisfaz ou aceita seu status de irrealidade, de hipotético?

Volto a Borges e Nabokov. Em suas Lectures on Literature, ao discorrer sobre Madame Bovary, Nabokov insiste em chamar a atenças de seus discípulos para o fato de que "Everything that happens in the book happens exclusively in Flaubert's mind, no matter what the initial trivial impulse may have been, and no matter what conditions in the France of his time existed or seemed to him to exist. This is why I am opposed to those who insist upon the influence of objective social conditions upon the heroine Emma Bovary. Flaubert's novel deals with the delicate calculus of human fate, not with the arithmetic of social conditioning."

O burguês satisfeito com seu mundo, com sua posição social, com o status quo, talvez não entenda nem aprecie o valor ou o significado maior da Literatura; aprecia talvez a pequena literatura que descreve apologética o mundo seu conhecido, um relato convencional de costumes. Imagino que seja esse o realismo desprezado por Borges. A grande Literatura não poderia ser convencional já que sua grandeza vem da ruptura ou da denúncia das convenções.

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