quinta-feira, 23 de julho de 2015

Um homem ca(n)sado

Sentei-me aqui disposto a escrever um conto, uma peça qualquer de ficção de onde aflorasse colorido meu talento literário, mas descobri, ao começar a digitar, que tenho um sono imenso. Sim, minha arte é comprometida porque sou um homem exilado da própria cama por filhos insones e assustados com a ancestral ameaça da noite misteriosa - meus filhos têm um pouco de medo de escuro e, se acordam no meio da noite, vão rapidamente para minha cama, de onde sutil e insistentemente me deslocam, me expulsam. Depois de um dia árduo de trabalho, não resta energia psíquica para criar uma obra de arte, resta sono.

Sou um pai cuidadoso, assusto-me com a possibilidade de ser omisso, de que meus filhos, crescidos, tenham mágoa de mim pela ausência, por não os ter ajudado nas tarefas escolares, por não lhes ensinar o inglês. Sou completamente dominado pela chantagem freudiana, pelo medo dos traumas de meus filhos. Prefiro, conscientemente, ser um artista frustrado que um pai culpado. Sou um correto cidadão cumpridor de meus deveres, o arquétipo do burguês comportado e convencional. Recuso-me também, por sólidos e angustiados princípios, a gastar o tempo de meu trabalho diurno a escrever sobre minhas inquietações literárias e existenciais. O que me sobram são essas escassas horas noturnas, quando meus filhos dormem e minha cara esposa não demanda minha distraída atenção.

Mais cedo, li um curto texto de Oliver Sacks se despedindo do mundo, anunciando que se prepara para morrer depois de descobrir-se com um câncer incurável, um texto sereno de alguém satisfeito com o que fez e com a vida que viveu. Engraçado como se despe das preocupações que o dominaram, engraçado e tocante. Despe-as não com desprezo, não diminuindo-lhes a importância, mas com a tranquilidade de quem fez sua parte, cumpriu seu dever e espera que os que ficam continuem de onde parou. Espero poder preparar minha obra, escrever e publicar meus livros, meus fracos poemas, depois de dar por finda minha tarefa de criar dois rapazes decentes e úteis ao mundo.

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