sábado, 5 de fevereiro de 2022

Veículos para quem voa

Um exercício mental interessante seria tentar imaginar veículos desenvolvidos por espécies naturalmente capazes de voar. Suas necessidades e urgências seriam completamente diferentes daquelas de espécies pedestres? No caso dos humanos, há muito maior diversidade nos transportes terrestres do que nos aéreos e nos aquáticos. Imaginamos que haja limitações físicas, por exemplo, no desenvolvimento de aeronaves que impedem que essas sejam mais manobráveis e flexíveis, mas e se as limitações forem na verdade biológicas ou de imaginação? Um cérebro de pedestre poderia realmente desenvolver um veículo aéreo de simples operação e flexibilidade de manobra?

Penso nas manobras "impossíveis" relatadas nos UFOs filmados pela Força Aérea Americana, claro. Talvez mais do que uma tecnologia avançadíssima, essa seja uma tecnologia avançada desenvolvida por uma espécie, ou por espécies, com caminhos evolutivos totalmente diversos dos dos seres humanos. Espécies volantes ou evoluídas em meios líquidos, não necessariamente água. 

domingo, 24 de abril de 2016

Burocrata mas poeta

Meu coração não retumba mais,
Bate regularmente, funciona
Quando sentado na poltrona
Leio, sem ânimo, os jornais.

Há muito não leio poesia,
Já deixei de declamar Camões.
Sou poeta da burocracia,
Sou antítese das revoluções.

Burocrata burguês e funcionário
Descontente com o rumo de seu fado.
Paradigma de um homem ordinário,

Sou escravo de um ótimo ordenado,
Sou herdeiro de um velho mundo agrário,
Sonhador e poeta apaixonado.

Amarras

Eu quero me livrar dessas amarras,
Do que é certo, da boa educação.
Desejo rimar pão com alcaparras
E tomar o meu leite com limão.

Não estou nem aí para conversas,
Convenções, bom-mocismo, adestramento.
Sou adepto de crenças controversas,
Praticante do livre-pensamento.

Cara mãe, não verás esse teu filho
Suspirando na ampla solidão
Ou lutando com o dedo no gatilho;

Estará, com luxúria e com paixão,
Mãos inábeis, abrindo um espartilho
E ofegante de calor e de tesão.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Um homem ca(n)sado

Sentei-me aqui disposto a escrever um conto, uma peça qualquer de ficção de onde aflorasse colorido meu talento literário, mas descobri, ao começar a digitar, que tenho um sono imenso. Sim, minha arte é comprometida porque sou um homem exilado da própria cama por filhos insones e assustados com a ancestral ameaça da noite misteriosa - meus filhos têm um pouco de medo de escuro e, se acordam no meio da noite, vão rapidamente para minha cama, de onde sutil e insistentemente me deslocam, me expulsam. Depois de um dia árduo de trabalho, não resta energia psíquica para criar uma obra de arte, resta sono.

Sou um pai cuidadoso, assusto-me com a possibilidade de ser omisso, de que meus filhos, crescidos, tenham mágoa de mim pela ausência, por não os ter ajudado nas tarefas escolares, por não lhes ensinar o inglês. Sou completamente dominado pela chantagem freudiana, pelo medo dos traumas de meus filhos. Prefiro, conscientemente, ser um artista frustrado que um pai culpado. Sou um correto cidadão cumpridor de meus deveres, o arquétipo do burguês comportado e convencional. Recuso-me também, por sólidos e angustiados princípios, a gastar o tempo de meu trabalho diurno a escrever sobre minhas inquietações literárias e existenciais. O que me sobram são essas escassas horas noturnas, quando meus filhos dormem e minha cara esposa não demanda minha distraída atenção.

Mais cedo, li um curto texto de Oliver Sacks se despedindo do mundo, anunciando que se prepara para morrer depois de descobrir-se com um câncer incurável, um texto sereno de alguém satisfeito com o que fez e com a vida que viveu. Engraçado como se despe das preocupações que o dominaram, engraçado e tocante. Despe-as não com desprezo, não diminuindo-lhes a importância, mas com a tranquilidade de quem fez sua parte, cumpriu seu dever e espera que os que ficam continuem de onde parou. Espero poder preparar minha obra, escrever e publicar meus livros, meus fracos poemas, depois de dar por finda minha tarefa de criar dois rapazes decentes e úteis ao mundo.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Um outro mundo e minha visão sobre ele

Tenho pensado muito em deitar em palavras minhas visões mais idiossincráticas sobre o mundo, pintá-lo com as cores que eu vejo. Tenho diversas opiniões e, mais importante ainda, opiniões diversas. Já tentei me psicografar, transcrever a narrativa monológica de minha vida, meus pensamentos e divagações, mas é difícil e eu teria que falar pelo menos quatro línguas que não domino. Ah, e essa dor de cabeça que não me deixa e torna difícil demais pensar e eu penso demais e o tempo todo e sobre tudo, que agonia meu deus. Deviam se juntar os neurônios todos e dar por findas todas as dores de cabeça, dizendo "aqui não, aqui mandamos nós e temos de trabalhar".

Quando menino e estudante, nunca entendi direito nas aulas de português esse negócio de sujeito e objeto. Sujeito é o que fala e objeto o que ouve. Ora, eu estou sempre falando comigo mesmo, sou sujeito ou objeto? Pode existir em gramática um paradoxo? Um ente pode ser ao mesmo tempo sujeito e objeto? O cara na expressão "matou-se" é o quê? Não estará aí a explicação da natureza divina do ser humano? Deus falou que ele era o que era por si mesmo, ego sum qui sum - imagino que isso signifique que todos que conversam sozinhos tenham uma partícula divina, criam o verbo para si mesmos e, afinal, no princípio não era apenas o verbo?

Em minha peculiar narrativa eu sou especial, há alguma coisa misteriosamente grandiosa em mim mesmo. Uma estudante de psicologia me aconselhou, quando eu tinha quinze anos, a fazer análise, que eu talvez tivesse delírios de grandeza, delusions of grandeur. Que artista que se preze não tem ilusões de grandeza ou ilusões tout court? Eu desconfio de muita coisa, inclusive de minha completa sanidade. Mas desconfio muito da sanidade dos outros, sou fino para achar que os outros são doidos. Já imaginei que se se juntassem célebres psiquiatras e me examinassem, chegariam à conclusão de que nunca houve alguém tão lúcido e são quanto eu.

Dei-me conta que se eu fosse o mais lúcido eu seria o único lúcido, o único normal. Mas normal é o que segue a norma e num mundo de sete bilhões não existe norma de apenas um, a norma é da maioria, o que me transformaria no único doido no planeta todo e se não tiver mais ninguém no universo eu seria o único doido do universo, assim como Obama seria o cara mais poderoso do universo todinho.

A dor de cabeça eterna explica muita poesia ruim. João Cabral de Melo Neto louvou a aspirina em versos, mas eu nunca vi propaganda da Bayer com os versos dele, talvez o departamento de marketing deles não leia poesia em português e não sei se JCMN escrevia em alemão. Ele era seco e anguloso como pedras sertanejas e se sentiu atraído mais pela Espanha seca. Acho que ele tinha dores de cabeça metafísicas também. A Crítica do Ácido Acetilsalicílico Puro. Não consigo me lembrar de uma rima soante para puro, embora possa pensar em pelo menos uma rima toante para pura. O que será que Ariano pensava sobre um poema à aspirina? Algum poeta americano deve ter escrito uma ode ao Prozac. Prozac deve rimar com backpack e talvez com brokeback.

Se eu pudesse nascer de novo queria vir como filósofo alemão. 

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Ceticismo poético

No prefácio à sua biografia de Borges, Edwin Williamson diz que "Borges rejeitava o que considerava a fraude intrínseca do realismo: a pretensão do romancista de erguer um espelho diante da 'realidade' quando de fato sabia tão pouco quanto seus leitores sobre o real modo de funcionamento do mundo." Prestemos atenção às aspas enclausurando a palavra "realidade". Nabokov, no Afterword a Lolita, afirma o seguinte:

"The book developed slowly with many interruptions and asides. It had taken me some forty years to invent Russia and Western Europe, and now I was faced by the task of inventing America. The obtaining of such local ingredients as would allow me to inject a modicum of average 'reality' (one of the few words which mean nothing without quotes) into the brew of individual fancy, proved at fifty a much more difficult process than it had been in the Europe of my youth when receptiveness and retention were at their automatic best." Não nos esqueçamos que Nabokov era leitor de Borges e de que ambos compartilharam de generosos copos de várias fontes.

Não há como não recordar de Fradique Mendes e seu desejo de aprender a "real realidade das cousas" (a palavras portuguesa coisa/cousa vem do latim "causa" - de onde virá a palavra "thing"?). Não sei se compartilho com Borges a rejeição ao Realismo e muito menos a opinião de que este seria uma fraude. O escritor que vale a pena ser lido tem, se não um entendimento, pelo menos uma percepção mais rica e nuançada da "realidade". O ficcionista, como Riobaldo, ainda que quase que nada não saiba, desconfia de muita coisa e pensa longe.

Donde a desconfiança de Borges e Nabokov pela realidade? Será uma desconfiança simplesmente estética, uma declaração de independência? Talvez num patamar diferente esteja o igualmente desconfiado Philip K. Dick, cujo ceticismo não era apenas estético, mas angustiado e patológico. Por criarem mundos e pessoas, situações e sentimentos, teriam esses autores, num tipo de acidente de trabalho por exposição excessiva, tornado-se hipersensíveis ao processo criativo e se acreditado possíveis personagens nalguma obra?

Crianças têm amigos imaginários, brincam com mundos de fantasia. Mario Vargas Llosa acredita que a Literatura seja um ato de rebeldia daqueles insatisfeitos com o mundo e a realidade - "I'm convinced that those who immerse themselves in the lucubration of lives different from their own demonstrate indirectly their rejection and criticism of life as it is, of the real world, and manifest their desire to substitute for it the creations of their imagination and dreams", diz ele em suas Letters to a Young Novelist. Gosto do que ele diz e suas palavras parecem me ajudar em minha constante busca por interpretar o significado da Literatura, mas me lembro de Kafka. Terão sido os mundos criados por Kafka uma rebeldia por essa realidade?

Talvez Kafka tenha sido ainda mais rebelde e exagerasse de caso pensado as pinceladas, descrevendo um mundo como pensasse que era por debaixo das aparências enganosas. Não sugeria um mundo alternativo, mas é como se dissesse "o mundo ideal seria o oposto disso que, enojado, descrevo." Mas já que estou tratando de realidade e ficções, o que dizer das ideologias e religiões? Não seriam também ficções, porém de um tipo mais perigoso, por mais extremo - um tipo que não se satisfaz ou aceita seu status de irrealidade, de hipotético?

Volto a Borges e Nabokov. Em suas Lectures on Literature, ao discorrer sobre Madame Bovary, Nabokov insiste em chamar a atenças de seus discípulos para o fato de que "Everything that happens in the book happens exclusively in Flaubert's mind, no matter what the initial trivial impulse may have been, and no matter what conditions in the France of his time existed or seemed to him to exist. This is why I am opposed to those who insist upon the influence of objective social conditions upon the heroine Emma Bovary. Flaubert's novel deals with the delicate calculus of human fate, not with the arithmetic of social conditioning."

O burguês satisfeito com seu mundo, com sua posição social, com o status quo, talvez não entenda nem aprecie o valor ou o significado maior da Literatura; aprecia talvez a pequena literatura que descreve apologética o mundo seu conhecido, um relato convencional de costumes. Imagino que seja esse o realismo desprezado por Borges. A grande Literatura não poderia ser convencional já que sua grandeza vem da ruptura ou da denúncia das convenções.

Você escreve poesia?

"Mas você escreve poesia? Como é que você faz?"

"Olhe, não sei se você entende bem por que alguém escreve poesia ou mesmo ficção, por que alguém faz arte."

"Não, não entendo. Ou melhor, acho que é para se expressar."

"Também, mas não é só isso. Talvez seja isso, se você expandir enormemente a abrangência do verbo 'expressar-se', para abrigar o verbo 'ser', o 'pensar', o 'sentir'."

"Tudo isso?"

"Tudo isso e possivelmente muito mais. Eu escrevo porque sinto uma vontade incontrolável. Fico algum tempo sem escrever, mas sempre pensando no ato. Acumulo minhas impressões, vivo, transformo, aproprio-me do que me acontece, do que vejo acontecer aos outros. Uma hora qualquer parece que há em meu cérebro um excesso a ser dito, tenho de escrever ou tudo que se acumulou vai transbordar de alguma forma, talvez até nalgum tipo de loucura, não sei. Escrever, para mim, é uma extensão natural do ato de pensar, de 'digerir' o que meu consciente e talvez meu inconsciente fizeram a partir de minhas experiências. Às vezes tenho a impressão que penso com os dedos. Minha compreensão do mundo é um processo criativo, inicia-se nos confins do cérebro, mas a verbalização consciente, a compreensão da compreensão acontece no ato de escrever. Eu psicografo a mim mesmo."

"Fascinante."

"Também acho. Mas não creio que isso seja exclusivamente meu, pelo contrário. Ainda faço isso muito primariamente. Preciso ler mais, aprender com os mestres, com quem transforma a compreensão em arte. Essa é a diferença entre quem escrevinha e quem escreve. Fazer arte é outra coisa. É pegar a argila e transformar num vaso cheio de beleza. A arte é um processo criativo altamente refinado. Refina-se o que a usina do cérebro produz."